Time feminino vira tema do filme Minas do Futebol
Depois de arrebatar torneio masculino, a equipe sub-15 do Centro Olímpico alcança os holofotes e põe em xeque o debate sobre os desafios da modalidade e da categoria de base no Brasil
Luana Reis - 13/09/2017 - 08:39 | Atualizado em 13/09/2017 - 18:53
Garotas quebram paradigmas e lutam pela democratização do esporte (Foto: Luana Reis/Band.com )
O time feminino sub-13 do Centro Olímpico virou pauta do filme ‘Minas do Futebol: porque o futebol começa na base’ depois de ter vencido um campeonato masculino em 2016 e falou dos principais desafios que enfrentam em entrevista ao Portal da Band.
Os desafios
Em 2016 as garotas da equipe sub-13 do Centro Olímpico entraram em campo e se sobressaíram num confronto acirrado com o preconceito. Até então não existia um campeonato para a categoria de base feminina e elas não tinham como pôr em prática o que aprendiam nos treinos.
Segundo o treinador da equipe, Thiago Viana, 28, ele estava cansado de ver as garotas aperfeiçoando as habilidades sem um torneio onde pudessem mostrá-las, quando decidiu inscrevê-las na antiga Copa Moleque Travesso – atualmente o torneio é chamado de Copa LIBRAEF.
“No início houve certa repulsa por parte de alguns membros do congresso técnico que foi realizado, mas apenas um foi efetivamente contrário à ideia de que as garotas disputassem um torneio de meninos. Mas, se existisse um campeonato para a base feminina a gente não precisaria fazer isso”, explicou Viana.
Após muito debate, as garotas puderam jogar com o time mesclado com integrantes da faixa etária da categoria e algumas mais velhas, entre 14 e 15 anos, para equilibrar a concorrência quanto ao fator físico. Mesmo assim, o time foi dado como sub-13.
Conforme Viana esclareceu, a diferença de força física foi uma das dificuldades que a equipe teve que aprender a driblar. “Alguns garotos já tinham passado da fase de maturação, enquanto as meninas não”.
Centro Olímpico vence a Copa Moleque Travesso e desperta debate sobre a categoria de base
No entanto, a maior afronta que as garotas superaram não estava entre as quatro linhas, mas no alambrado, gritando palavrões e ofensas como “vai para casa lavar louça”, “aqui não é lugar de menina”, “saiam daqui”, entre outras coisas.
A melhor goleira do campeonato, Marcelle Freitas Joaquim, 14, contou que uma das piores lembranças que tem da competição é a semifinal contra o Olímpia. Elas venciam por 3 a 1 e quando estavam deixando o campo, os pais dos garotos tentaram invadir para agredi-las, pois “não toleravam a ideia de que os filhos, meninos, tinham sido derrotados por garotas”.
Elas conseguiram ignorar as piadinhas com auxílio psicológico fornecido pelo Centro e a gestão de grupo feita por Viana e os demais membros da comissão técnica. “Enquanto diziam que a gente não podia, nós repetíamos que sim, ali era lugar de mulher, porque mulher pode sim jogar futebol”, contou a defensora da meta do Centro.
Marcelle foi a goleira menos vazada da Copa Moleque Travesso e a melhor do Paulista Sub-17 | Foto: Luana Reis/Band.com
Assim, as garotas avançaram até a final da disputa e arrebataram o troféu diante do São Paulo Piloto – time da base do Tricolor paulista – com placar de 3 a 0.
Veja os gols da decisão do torneio:
Os triunfos
Além de desbancar quem as subestimava, com a participação e a qualidade futebolística que apresentaram, as garotas levantaram o debate acerca da modalidade, principalmente sobre as categorias de base no Brasil.
“Não há visibilidade para futebol feminino, nem mesmo para a base. Sem a divulgação não há patrocínio e sem patrocínio é difícil desenvolver a modalidade”, apontou o treinador Viana, para quem só a legislação pode ajudar a reverter a situação.
Porém, ele indicou pendências no Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro (Profut) – proposta de regulamentação do futebol e refinanciamento das dívidas dos clubes. Entre as exigências do Profut está o investimento no futebol feminino e nas categorias de base; o não cumprimento pode gerar rebaixamento. “Não há uma cobrança firme quanto a isso”, reforçou o técnico.
Além da lei do Profut, há a regulamentação da Conmebol. O novo documento, divulgado no ano passado, determina que os clubes tenham ao menos um time de futebol feminino. Ao contrário, podem ficar de fora da Copa Libertadores e da Sul-Americana. Esta regra passa a valer oficialmente em 2019.
No contexto artístico e cinematográfico, as garotas do Centro Olímpico chamaram a atenção do diretor e produtor do longa ‘Minas do Futebol’, Yugo Hattori, 27. “Gosto do futebol feminino, da questão de gênero envolvida e quando vi matérias sobre a vitória das garotas eu fiquei feliz. Feliz pela conquista, por si só, mas principalmente por ela representar uma quebra significativa de preconceitos”.
O filme foi divulgado na internet na última segunda-feira (4) e pode ser assististido por este link. De acordo com Hattori, o intuito era mostrar para o mundo a história daquelas garotas, mas de uma forma diferente. Ele buscou abordar o tema de maneira esperançosa, pensando que seu sobrinho Quino, por exemplo, pudesse assistir e ter um referencial sobre esporte mais abrangente. Não mais limitado ao futebol masculino, que “é um universo com aspectos machistas”.
No filme, ele trata a Copa Moleque Travesso como trama de pano de fundo e vai relembrando as etapas da disputa enquanto acompanha as meninas em um novo desafio: a briga no primeiro Campeonato Paulista Sub-17 da modalidade, realizado pela Federação Paulista de Futebol (FPF).
“Acompanhei a competição com elas e fui me envolvendo aos poucos. Em alguns trechos a emoção flui ali, no calor do momento, e é possível perceber pela forma como estou filmando, pelo enquadramento”, relatou.
Um time sub-15 para um campeonato sub-17
Algumas garotas da categoria sub-15 formavam aquele time que venceu a Copa Moleque Travesso. Com a conquista do torneio, as meninas deram mais visibilidade ao Centro e a instituição foi procurada por clubes como o São Paulo para disputar o Paulista Sub-17 por meio de uma parceria.
Porém, a equipe sub-17 já estava confederada como Centro Olímpico e, para não perder uma boa parceria, o Centro ofereceu a então equipe sub-15, explicando que era um elenco forte pela trajetória de 2016.
O São Paulo aceitou a proposta e foi a campo com um time mais jovem brigando pelo título do primeiro campeonato de base feminina.
Para a surpresa de todos, as meninas venceram as demais equipes, com garotas mais velhas, e se consagraram campeãs novamente.
Mas ainda há muito a fazer
Após tantos embates e conquistas, elas seguem lutando por mais campeonatos para a base, mas, principalmente pela “democratização” do esporte.
No Brasil, a cultura machista prevalece até mesmo no meio esportivo, sobretudo no futebol. Para Thiago Viana, a problemática vivida pela base e as diferenças quando refletidas sob a perspectiva de gênero têm todo um contexto histórico. “O futebol masculino é mais valorizado no Brasil, além disso o garoto já nasce com o estímulo para ser jogador. Uma menina, ao contrário, é desestimulada. Isso tudo recai na questão da visibilidade – a longo prazo – do esporte”.
Assim como tantas coisas no país, o futebol feminino engatinha em seu desenvolvimento, visto que foi proibido legalmente entre os anos 1940 e 1979, com base em uma legislação que submetia a figura feminina as meras funções de reprodução e zelo do lar.
Dilema: a fabricação forçada de goleiras
Não bastasse a falta de respeito, de estímulo, investimento na base e visibilidade, o futebol feminino sofre com a escassez de goleiras.
“As garotas chegam aqui na peneira do Centro Olímpico e querem jogar na linha. Às vezes, de 60 garotas só uma quer defender a meta... às vezes, nem uma”, lamentou o preparador de goleiras Daniel Santos, 50, que instrui Marcelle desde o ano passado.
“As grandes jogadoras de linha têm sua parcela de culpa. Martha e Formiga são referências para essas meninas, mas o holofote concentrado apenas nestas atletas faz a ‘meninada’ esquecer do gol”. Santos trabalha na função, no Centro Olímpico, desde 2011 e de lá para cá treinou todas as goleiras que passaram pela instituição - que é vinculada a Secretaria Municipal de Esportes - e, segundo ele, “uma delas já alcançou o sonho de todas: a Seleção Brasileira. Quando Ana Clara integrava o time sub-13 ela vestiu a ‘amarelinha’”, contou orgulhoso.
“O futebol feminino não quer migalhas”
Em meio as dificuldades o futebol feminino tenta se estruturar, mas ainda há muito o que fazer. Para Viana, é preciso abandonar a ideia de que a modalidade se contenta com migalhas e aplicar cobranças legais aos clubes, para dar um “clique” a ponto de finalmente investirem na base.
Em paralelo, a Federação Paulista de Futebol estuda o desenvolvimento de mais campeonatos para as categorias sub-13, sub-15 e, quem sabe, para o sub-20.
Enquanto o projeto é especulado, as garotas matam os desafios no peito e convertem dentro de campo para que o sonho de vestir a ‘amarelinha’ se realize e, assim, formem mais times pelo Brasil com novas Marthas, Formigas, Mariléias e Andréias.